terça-feira, 27 de setembro de 2016

Rio, horizonte fluido.

O que mais me marca em viver onde vivo é poder vez ou outra lançar ao longe o olhar e receber em troca um horizonte fluido a me acarinhar e dizer que nem tudo é tão duro assim. 

Se já amo as ruas pela sensação que elas me provocam, (de pertencimento, suspensão, conexão e introspecção ao mesmo tempo) amo-as mais ainda porque algumas me levam até a linha das águas dançantes, onde o limite é ilusão e a distância é permanente. 

Se há um algo para o qual a gravidade me atrai desesperadamente, esse algo é essa cercadura de curvas circunscrita entre a terra e o céu, que de longe se mostra um portal pro infinito, um triz entre o chão e o etéreo e de perto pesa e dança, fazendo ecoar ventos que cantam e fazem dormir monstros residentes nos peitos de quem passa demasiado perto.


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

No útero abissal ecoa tua dança infinita*

“O que é aqui?” assim começou minha experiência com um espaço chamado Espaço Experimental e com o espetáculo “Cara da mãe” do Coletivo Cênico Tenda Vermelha. À deriva pelo centro histórico de Recife, um lugar me chamou atenção. Passei, voltei e indaguei. Pois bem, a resposta foi: “Vai ter um espetáculo, daqui a 20 minutos.” “Ah, que legal! De quê? Dança? Teatro?” “Não tenho certeza, mas acho que os dois...” “Quanto custa?” “20 reais”… “Obrigada”. Fiquei.

Recebemos vendas vermelhas, feitas com um tecido que mais parecia uma tela, não encobria a vista totalmente, deixava apenas sobre o olhar um filtro translucido de cor vermelha… Interessante… Aguardamos o horário na escada, começou a chover lá fora. No momento certo subi as escadas, curiosa, presente.

Guiados pelas artistas, sentamos… Ouvimos vozes fortes, olhares intensos e penetrantes, elas se reportavam à nós. Saias rodavam suave e ferozmente em contraluz espalhando a fumaça ao redor. Era vermelha também a luz, branda. Várias cenas umas mais compreensíveis que outras, se desenrolaram em nossa frente e éramos pouco a pouco convidados a mergulhar em lembranças de coisas que não pertenciam a nossa memória mas que ao mesmo tempo era de lá mesmo que haviam saído.

Gestos fortes, corpos em movimento, chão, mãos, pernas, pés. Era como se eu estivesse flutuando em meio ao bailar das andorinhas quando o sol se põe. Me desloquei de qualquer tempo-espaço, estava lá, em suspensão e podia sentir tudo aquilo como um grande carinho, um grande abraço, um aconchego de mãe.

Ao final, fomos chamados para mais perto. E de repente me vi em um ventre. Calmo, macio, líquido, translúcido e vermelho. E elas que nesse momento já pareciam imagens de seres etéreos dentro de um universo onírico e nostálgico, saíram do limbo de saudade em que pareciam estar e abraçaram, um a um dos que estavam presentes. Ao som de cantigas suaves… Sob a leveza dos sorrisos e olhares surpresos ao redor. “Sou de nanã euá euá eaê...” Ecoava... As ondas sonoras me tocaram cada poro... Emoção. Lágrimas… Não me contive. Não fui abraçada e nem notei, pois que houve um abraço maior que me acalentou. Não queria ir embora…. Mas fui… Flutuando procurei pelo caminho de casa e achei, sentindo em meu "útero abissal" ecoar aquela intensa e bela dança infinita.

Maravilha pra mim é encontrar vez ou outra, distraidamente, esses ninhos tão deliciosos de se aconchegar, onde se torna inevitável o descansar. Essas coisas de gente me fascinam, não sei direito pra que serve ser humano, mas sei que já encontramos uns jeitos suaves e bonitos de tocarmos uns aos outros. Me comove muito sentir quão profundo podem ser alguns momentos e o quanto os dias podem nos guardar coisas que carregam o peso da gravidade e da essência desse mistério todo que é existir sendo gente.

* a frase do título faz parte do espetáculo

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

debaixo das camadas de carne, trincheiras...


Há em mim um algoz sanguinário e odioso, de peito petrificado, pequeno e demoníaco, sedento de lágrimas negras, que fere a cada passo que dá. É feio e ingrato, egoísta e mesquinho. Frágil e rancoroso. Insanamente existe ele, a se defender, a atacar. Sua vítima, igualmente, mora em mim, e minha visão fica turva ao tentar enxergá-la, só sei que também existe em alguma dimensão de meu vão interior. Meu oco é então, pano de fundo para as mais sangrentas batalhas. Lutas sem sentido, vazias, dolorosas... Sem entender, sigo sendo perfurada a flechadas, tiros, explosões e muitas implosões. Algo em mim me quer muito mal. E algo em mim foge disso, sob ferozes ataques. Me sinto como um organismo perturbado que por motivos obscuros confunde proteínas com agentes invasores, e as ataca. Uma alma autoimune talvez? Há dias em que acordo e junto de mim despertam esses demônios, não sei como detê-los. E será que há como? Onde a poesia? Onde a sustância de tudo que há? Onde eu fico enquanto duelam em mim algozes mortais? Quem me guarda de mim?  
Não me admira todo esse estrago na humanidade, se na mínima instância da existência, dentro dos liames dos universos particulares, tanto tormento pode ser criado por um único ser...

*não sei de quem é a imagem