segunda-feira, 23 de julho de 2018

O dia amanhece, mas ainda é noite.

O dia amanhece, mas ainda é noite. Emerjo da liquidez dos sonhos e mergulho na realidade, saio de uma água para outra. Sem fronteiras... Sigo no caminho das profundezas oceânicas, ando em suspensão, sigo o roteiro programado. Calada, noto meus sentidos se expandindo, posso sentir cada pequeno barulho e gravar cada milésimo de frame do que vejo. O ruidoso som das chaves tilintando umas nas outras dividem espaço com sua gelidez metálica, lisura dura e seu prateado envelhecido mas ainda um pouco cintilante. Abre-se a porta, portas fechadas. Há uma contradição nisso que sou... De novo aquela vontade de não ser. Aquele medo do depois e aquela fraqueza do agora. Coloco mais café do que deveria. Duvido da minha existência. Lembro de coisas que não vivi. Ainda não passei da décima primeira página daquele livro. Minhas coisas foram encaixotadas e estão na calçada. Minhas quinquilharias foram convidadas a se retirar. Queriam jogar tudo fora. Não jogaram... Mas lá está tudo, tudo o que eu sou,  pairando parado no cimento cru.  Se eu não sou minhas quinquilharias, meus livros lidos e não lidos, minhas coisinhas pequenas guardadas em caixinhas ou sacolinhas... Desimportâncias... Quem mais eu sou? Quando soube que estava grávida, tive certeza que enlouqueceria. Quando "voltei" a "mim", surpresa me vi mais lucida e objetiva que nunca, havia florescido uma versão melhorada de mim, voltei a um ponto no qual jamais havia estado. Hoje entendo que na verdade enlouqueci, mas alguma coisa etérea me ensinou a guardar minha des-consciencia nos bolsos que não tenho.

Houve uma época em que guardávamos o tempo numa xícara, passou um pouco e xícara já não há. Assim como já não há mais nenhum tempo que se guarde. Estou em várias dimensões de mim agora. É confuso... Contraditório... Ridículo... Eufórico e triste ao mesmo tempo, como um vídeo de personagens conhecidos dançando e correndo ao som de "one way trigger" enquanto o sol se põe. Tenho dúvidas... Onde devo estar de fato? O que exatamento eu posso fazer? Onde está escrito tudo o que não posso me atrever a ser? Onde pego o mapa com as coordenadas de onde não estar? Todo humano precisa de uma mãe, eu diria. Elza disse que deus é mãe. Eu tenho cada vez mais medo (e raiva?) dessa palavra. Oscilo, como sempre, entre caimbras e espasmos.  Nada continua. Hoje quero permanecer num lugar escondido de mim.  Só queria poder misturar o som de água da música que tocava quando Cecília nasceu, com o que senti quando ela me encarou pela primeira vez, com o que sinto quando ela me abraça, com o que sinto quando ela fecha os olhos e dança, com o que sinto ao ver seu sorriso e seus passos, com o sinto ao ver o rio amazonas, e o que sentia ao tomar banho de chuva, ao dançar de olhos fechados, com o que sinto depois de tomar um copo de vinho, e o que sinto enquanto desenho, canto, filmo, vejo uma apresentação teatral ou filme que me arrebata...

Amanheceu mas ainda é noite, e as palavras povoam minha alma como quem narra uma história em um universo onde a minha voz importa. As vezes elas só me saem, sem forma, sem boniteza, só com letras e fome, gritando por liberdade. No fim das contas sou sempre eu, sozinha, distante, poente, falando sombras e luzes comigo mesma.


sábado, 7 de julho de 2018

Ano I






Curioso como um ano pode passar tão rápido e ser tão gigante ao mesmo tempo. Uma vez eu vi um ninho de beija-flor, feito  num fio de energia, dentro de uma construção inacabada. Eu que sempre imaginei um ninho de beija-flor na infância, me emocionei e achei que nunca mais veria um igual. Eis que no sábado em que Ceci completou a primeira volta em torno do sol, vimos juntas uma mãe beija-flor, de uma espécie grande com peito branco, chegando em seu delicado ninho indo ao encontro de seu minusculo filhote. Quão pequena vida! Quão pequenas as nossas!? Nesse dia vimos também três anus brancos, enormes, abrindo suas lindas caudas e saltando entre os mururés no que parecia uma perseguição coletiva. Aprendi o nome regional do anu branco nesse dia, mas já esqueci.

Tem uma coisa de sol que a Cecília me apresenta que inaugura uma energia nova nesse meu universo tão lunar. É também uma coisa  forte de silêncio e de presença integral, que ilumina e aprofunda cada segundo como um outro tipo de consciência da existência, mais atento e sensitivo. Me pergunto como uma mãozinha tão pequena, tão leve, tão macia, pode ser capaz de me tocar tão profundamente. Só sei que agora choro como quem é feita só de água. Preciso ouvir o que todas essas coisas me dizem antes que seja tudo diluído pela maré do devir.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Aqui d-entro.

Dentro de mim há uma dança, uma música, uma festividade antiga, originária, sincrética, pulsante e colorida. Aqui dentro acontece um baile, um desfile de personagens circenses desbotados e debochados. Aqui dentro eu sambo, rebolo, giro a saia, sorrio. Aqui eu sei fazer música e canto juntando melancolias, rasos e funduras. Aqui dentro acontecem espectáculos, grandes manifestações de humanidade. Aqui eu pinto grandes murais, construo bonecos de papel machê, crio máscaras, coreografias, longas metragens, livros, miniaturas, fotografias...  Aqui todas as - minhas - desimportâncias importam. Tudo "aqui"... Da ponta do nariz pra dentro. Dos cantos dos olhos pra dentro. Das unhas das mãos e pés pra dentro. De todos os orifícios de meu corpo pra dentro.
Dentro... Onde entro e sento, fico, espero. Dentro... Onde sinto, vejo, amo, quero.
Dentro... Onde sonho, desejo, e bailo -gigante.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Tenho chorado ao ouvir ou saber de histórias de amor... Não sei direito porque, mas é como saber de coelhos a andarem pelas ruas. É como saber que alguém densificou um pouco de vento, guardou num pote e colocou em uma exposição. A cada dia que passa algumas coisas des-existem em meu imaginário, em mim... Evaporam ideias e conceitos antes tão concretos... Abstraem-se nas minúsculas entrelinhas dos dias... A dúvida recorrente é se isso é bom ou ruim. Será que vai sobrar algo quando tudo o que eu sou evaporar?

quinta-feira, 14 de junho de 2018

sussuro vazios

Às vezes, quando só, balbucio nadas. Emito sons como quem tem algo a dizer. Movo os lábios e tensiono o queixo repetidamente, como quem fala diversas palavras que de tão curtas nem existem. Sussurro vazios na língua da ausência, traço diálogos indecifráveis com ninguém.


https://www.youtube.com/watch?v=nY3ghukPKtA

sábado, 2 de junho de 2018

Não sou grande.

Sentada, vejo/sinto/ouço Alceu Valença cantando La Belle de Jour e Girassol. Comigo, Cecília. Em silêncio admiramos alguma coisa grande de beleza pairando no ar. Em suspensão aqueles minutos parecem levar dias. Olho ao redor, tudo parado. Olho para fora de casa através do vidro da porta, as mangueiras que fazem parte da vista estão a bailar devagar. Cada vez mais devagar... Até que param. Assim como está parado também meu corpo. Percebo então que estou ali, bem ali, exatamente ali, inteira. E junto a mim um pequeno ser humano também inteiramente presente. Conectadas pelo colo, nos ligamos num abraço macio e quentinho. Olho novamente pela janela, fito as mangueiras agora já completamente estáticas. "Eu não sou grande", essas palavras são sopradas em minha mente por algum sussurro do universo e me servem de estalo. Eu não sou grande! De fato, não sou. Sou pequena em demasia. Muito muito pequena, do tipo que nem se enxerga a um metro de distância. E longe. Sou demais longe. É demasiadamente longe essa coisa toda que eu sou. Talvez por isso me arrebate tanto, estar perto, tão perto do aqui e agora, e tão perto também do que é grande de verdade.








quinta-feira, 22 de março de 2018

Ojos morochos

Toda santa vez que a vejo acordar meu conceito de beleza é "atualizado com sucesso". E não é por causa de seus olhinhos puxados (herdados do pai) e a deslumbrante mistura de cores que os assemelham a pedras preciosas (ou apenas "los ojos morochos mas lindos que vi")... É que a cada vez que vejo suas pálpebras abrindo e lhe revelando o mundo novamente a vejo me olhar como quem contempla o infinito do firmamento, sinto a profundeza do seu olhar me atravessando com a delicadeza e todo o mistério que só os recém chegados nesse plano são capazes de carregar... 

Não tem a ver com os seus olhos,  mas com o universo que transborda deles e me atinge de forma aguda, toda santa vez que ela acorda. É lindo... E é sempre uma lindeza diferente...

terça-feira, 13 de março de 2018

Nada com nada

Abro a porta às dez da noite, ponho-me a empurarr os olhos pra fora, só pra confirmar que é noite. É noite. O vento frio e amarelado de rua deserta e molhada me reafirma que é mesmo noite agora. Há vazio, há niguém, há nada ali além do meu olhar que paira loucamente de um extremo a outro da rua. Não existe fora e nem dentro quando ponho os olhos da porta pra lá.

"Tiro na mente"... Ouvi duas vezes essa frase essa semana... Num mesmo dia, aliás. Mesma conversa, na verdade. Nunca havia ouvido e muito menos pensado na possibilidade... BUM! Perfurou minha cabeça ouvir esse conjunto de palavras... Poderia a mente ser acertada fisicamente, seja lá pelo que fosse? 


E como é o inverso de um abraço? Uma sensação forte e desamparadora de não-encontro de corpos e almas, de não-contato, de não-afeto... Como é isso? A sensação dura e ávida da ausência de pressão da matéria corpórea de um ser sobre outro de forma simultânea. Acho que envolve sentimento além do sensório... Se o abraço é algo bilateral, o não-abraço também o é? Bem que poderia, mas me parece que não.


domingo, 21 de janeiro de 2018

Desculpa, meu amor...

"Desculpa, meu amor... " Ouvi vindo por trás de mim enquanto abria o portão. A música brega vinha de uma caixinha de som de um senhor, que andava acompanhado de outro senhor, ambos quase acompanhados de uma senhora, que, tentando se distanciar, visivelmente estava com vergonha do (provavelmente) marido, portador da música alta. Ao notar minha presença ela esbravejou: "DESLIGA ESSA DROGA! Que coisa mais BESTA!" como quem se defendia da possibilidade de estar ouvindo por vontade própria aquele brega naquela manhã ensolarada de domingo, ao mesmo tempo ela foi se afastando deles ao ponto de estar a uns três metros de distância.

Olhei pra ele e vi o exato momento em que abaixou o volume. Ao seu lado, um sorriso amarelo, complacente, de seu (provável) amigo, sob um malandro chapéu panamá. Vi ali também uma tristeza e ela seguiu junto.

Olhei para a mulher e só enxergei os passos firmes e retilíneos de quem sabe da raiva que está sentindo. Vi suas costas certas de que era para "lá" que deveriam se voltar  sua frente e seu andar.

Foram diminuindo... Passaram todos. Seguiram para esse "lá" da rua, onde minha vista não alcança. Seguiram como quem, apesar de qualquer coisa, sempre passa, apenas passa, pois que é feita de passar essa natureza deles.
Olhei a porta, abri, entrei. Como posso ser todos eles ao mesmo tempo? (As pessoas, a música, a rua, a complacência, a raiva, a tristeza e o passar.)


sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Foi um sonho (?)


Emergi numa dimensão onírica mas muito concreta. Deve ter sido a primeira vez que tive a sensação de estar sonhando durante um sonho. Mas era tão material o meu redor que ali me convenci de que eu realmente estava. Olhei atenta o lugar deserto, tentando fixar os detalhes de onde jamais estivera, até aquele momento. Era um local com ares de casa antiga, mas a arquitetura mais parecia algo contemporâneo, brotado da espontaneidade da necessidade. A Pintura lilás, de tinta esmalte brilhosa, estava por toda parte e fazia reluzir as linhas arredondadas e orgânicas do reboco que cobria a mureta e as paredes. Ninguém por perto. Era noite. Lugar desconhecido. Minha consciência surge naquele lugar misterioso, cujo deserto tão evidente me despertou fantasmas e sobressaltos. Meu olhar pára numa espécie de cabine, feita do mesmo cimento e coberta da mesma tinta. Havia nela um balcão, como uma baiúca de vender açaí, ou mesmo uma área de lazer de um residencial, com aquelas churrasqueiras grandes de tijolos. “Não tem ninguém aqui” tremia meu pensamento enquanto eu sentia o medo subir pelas pernas...  Me aproximo e enxergo na parede da cabine, imagens de santos ou algum tipo de iconografia sagrada. Algo puxa meu olhar para o outro lado da rua. Os muros baixos permitiam esticar meus olhos ao longe apesar do breu. Um cemitério!? Um cemitério!! Tinta fresca, azul anil, detalhes brancos. Mesma estética de cimento de linhas tortas… Era tudo o que eu conseguia ver além das sombras e da escuridão. Olho rápido ao redor... “Não tem ninguém aqui!”. Suspiro forte. Tela preta. O medo me leva. Sumo. 

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

É grande ao redor...


...Sou dada a observar distâncias.
Percorro com os olhos as longas linhas invisíveis que traçam os caminhos que não são perto. Sou o tipo de gente que enxerga beija-flores ao longe, pássaros voando depois de onde a vista alcança. Fácil alcanço lonjuras, mas como engolir as distâncias e tocar o que é perto, o que é aqui? 
É grande ao redor... Enorme até. Tantos caminhos...

Onde
ei
de
ser
?

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Dentro é um buraco sem fundo


...
Acho que morri um pouco. Aliás, sei que morri. De repente parece tudo uma grande tolice. A humanidade é ridiculamente pequena diante do cosmos, quiçá eu. Outro dia experimentei o nada, de novo, mas dessa vez acho que ele me abduziu. Dentro é um buraco sem fundo. Eu trouxe mais alguém pra este mundo. Esse mundo abarrotado de gente que flui dum jeito torto e desconexo entre si. Achei que seria só mais um pedaço de morte, coisa simples, normal, mas grande parte de mim simplesmente não voltou. Quando era criança eu tinha uns insights que me levavam rapidinho no nada e me traziam de volta ofegante, desconfiada, apavorada... Normalmente acontecia na área de serviço: "E se eu fosse uma máquina de lavar?" Sem pensamento, sem coração, sem sentimento ou qualquer sensação??? Era desesperador, tocar a não existência.. A não vida. Estarrecedor pra uma pequena menina. Outro dia, a sensação de não-ser pipocou de novo em minha consciência e se espalhou explosivamente pelo meu corpo, mente, alma... É ruim, mas não consigo evitar. Ao menos era ruim antes, agora talvez eu tenha me encontrado pelo reino absorto do tanto faz. Não ser... Sem expectativas... Sem medos...  Ninguém... Nada... O nada pode ter se tornado uma opção nunca dantes revelada e o tudo continua demasiado pesado, confuso e pretensioso. 

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018